Deixemo-nos de merdas.

Tempo de ser


Não gosto de dias como este. Chuvoso, escuro, frio, neve, desagradável.
Olho pela janela à procura de uma luz e nada.
Felizmente, cá dentro, quentinho. E a melhor companhia. 
Sussurram segredos tontos para eu não ouvir mas depois é escuta-los às gargalhadas.
E isso aquece.

Olho melhor. Afinal, há qualquer coisa lá fora.
Um balão. Amarelo. Preso numa árvore. 
O Gabriel tinha-o soltado em direcção ao céu. E contra todas as expectativas, neve, chuva, vento, la continua ele. Em frente à minha janela. Vou toma-lo como um bom sinal.

Discutíamos no outro dia, numa troca de ideias muito interessante, e o Gabriel perguntou-me do que é que eu gostava muito muito. Mas ele não queria saber qual era a minha comida favorita, a cor de que eu gostava mais...Queria saber o que é que eu gostava muito muito. O que me dava paixão. Perguntando ele exactamente o significado daquela palavra.
Rapidamente enumerei algumas coisas que me saíram da boca mas voltei, mais tarde, a pensar melhor no assunto. O que é que eu gosto muito muito?

Pessoas.
Gosto da embrulhada desta palavra e da sua complexidade.
Gosto de pessoas.
De as olhar. 
De ver a beleza (ou não) daquilo que elas são ou fazem e em que contexto.
E relembrar que eu, enquanto indivíduo, não sou nunca mais do que os outros. Porque mesmo sabendo já isso há muito muito tempo, às vezes durante segundos, esquecemos-nos. E, às vezes, a vida dá-nos uns valentes sopapos na cara. E com muita razão.
Por detrás de cada atitude individual, há toda uma história, há toda uma bagagem, há toda uma circunstância, há toda uma fragilidade, há toda uma insegurança. O que for. Que nós não conhecemos. 
Por isso, deixemo-nos de merdas e de barriga cheia e de arroganciazinhas que não nos levam a absolutamente lugar nenhum.

Vou contar uma história que me aconteceu há não muito tempo com uma cliente:

Dia de muito trabalho. Loja a abarrotar de gente. As minhas mãos eram mil e os meus olhos dois mil. Pouco importa. O contexto não serve aqui de desculpa.
Enfim.
Há muita gente que, por hábito, tristemente, devido à falta de maneiras, não gosta de responder à simpatia de quem os cumprimenta. 
Detesto quando me isso acontece.
Nesse momento, há duas pessoas que me acenam de uma maneira não muito agradável. Eu já as tinha visto. Assim que acabasse de desembaraçar uma fila enorme de clientes, eram a minha prioridade.

Fui.

- Bom dia, disse eu.
Nada.
-Bom dia. (voltei a repetir)
Ainda sem resposta.
Uma delas começou a falar-me imediatamente inglês (sem sequer ter a gentileza de me perguntar se eu percebia alguma coisa da língua).  
Com óculos de sol. Como se dentro de uma loja, no meio de um centro comercial, o sol batesse forte. 
Comecei a ferver.
Depois falavam entre elas numa outra língua. 
A fervura aumentava.
Mas que falta de respeito, pensei eu.
(Episódios como este acontecem em repetição)
Acho que não pus a minha melhor cara. Acho não, tenho a certeza. 

Conclusão: 
A senhora era cega. Apercebi-me eu mais tarde.
A acompanhante não falava sequer o inglês. 

Toma lá para aprenderes Silvia Carina.
Que ninguém te mandou achares isto ou aquilo.

Continuo a cruzar-me com muitas pessoas.
Todas elas muito interessantes nas mais variadas formas. Não significa sempre que interessante seja bom mas interessante.
Algumas, só consigo perceber certas atitudes com o devido distanciamento que dou às coisas.
Muito interessante o que aprendo também sobre mim nesse relacionamento pessoal e o que aprendo delas.
Coisas que vou aprendendo a relativizar, coisas que prefiro evitar ou pessoas que vou querer abraçar sempre. 
Que coisa complexa esta de equilíbrio de egos.
Diria que é lindo. Ainda que, por vezes, não o seja.
Interessante.

Olho de novo o balão amarelo. E penso:
Está sempre tudo certo.
Continuemos.

SM

Comments

  1. Que reflexão excelente. Prosa e poesia conjugadas num sentimento tão humano, tão real. Ser em cada dia, em cada lugar e sentir com o âmago do que somos... Adorei ler... Parabéns! Beijinhos.

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